quinta-feira, 26 de maio de 2011

Por que Idalina foi para o Japão...

Para Renato Mascarenhas de Souza Filho



Desde o início, eu sabia que aquilo não ia dar certo. Só não falei nada, pra não parecer que eu estava tentando atrapalhar os planos dela. A sua família, então, que adora falar mal de mim, iria dizer logo que é isso mesmo, que eu sou uma asa-negra, sou um estraga-prazeres, um caga-na-saquinha e mais uma enxurrada de pejorativos formados por palavras compostas, como essas que acabei de citar. Ela mesma chegou a jogar na minha cara que eu estava era com ciúme, medo de perdê-la para algum megainvestidor da Bolsa de Tóquio. Bobagem, vê se um nipomilionário iria se interessar por ela. Eu só estava querendo que ela investisse melhor as suas economias, mesmo que gastasse parte delas em viagens, que era o seu grande sonho.
Me diz com franqueza: o que Idalina iria fazer no Japão? Não perdeu nada lá. Dizia que era coisa ancestral, que um bruxo tinha dito que em outra encarnação ela havia sido uma gueixa famosa. Soube que ele até levou uma grana dela, depois de ter dito isto. Na seqüência, um outro bruxo, que até cobrou bem mais caro por seu serviço, falou que ela tinha sido a esposa favorita de um imperador japonês, cujo nome eu nunca soube ou não lembro mais, agora. Só sei que eu tinha um mau pressentimento, a cada vez que ela me falava nessa história de ir ao Japão. Fazer o que tão longe, se ela nunca viu um açude sangrando em Parelhas, aqui mesmo, no Rio Grande do Norte? Idalina não sabe a beleza de um tuiuiú, alçando vôo no Pantanal matogrossense. Cacete, excluindo a Disneyworld, por motivos óbvios, ela tinha todo o resto do planeta para conhecer. Então, por que o Japão?
Idalina começou a juntar dinheiro para a viagem, no final da década de 80. Quando o filho da puta do Collor entrou e confiscou a poupança dela, dava dó ver o estado de depressão em que ela ficou. Aliás, no fundo, eu até sentia uma certa pontinha de alegria, uma coisa meio perversa, sou obrigado a confessar, pois sabia que a viagem dela tinha ido por água abaixo. Mas a danada é tinhosa, logo deu a volta por cima. E assim que pode, começou a juntar dinheiro de novo. Quando dei por mim, ela já tinha a grana suficiente para as passagens e hospedagem por três meses. Fora um qualquer, pra circular e comparar bobagens.
No dia da partida, embora contrariado, aceitei participar do bota-fora, junto com alguns amigos dela, no aeroporto. Com direito a prosseco e balão de gás - imagine. Que mico horroroso! Depois que ela transpôs o portão de embarque, eu me despedi daquela gente, alegando pressa, e comecei a tomar um porre ali mesmo, num dos bares do Tom Jobim. Só cheguei em casa depois das sete da matina, e quase não lembro de nada do que ocorreu naquela noite. Passou-se mais de uma semana, para que ela fizesse o primeiro contato telefônico, me dando conta de sua chegada a Tóquio. Idalina falou algumas coisas incompreensíveis e explicou, como pode, que estava ainda meio aturdida com o fuso horário.
Depois, os telefonemas foram ficando cada vez mais esparsos, como cada vez mais difícil ficou compreender o que ela estava dizendo. Pelo o que me deu a entender, visitara Hiroshima e Nagazáki, tirando fotos dos respectivos monumentos às vítimas da bomba. Falava também de alguém que “si cagava”... “si catava”... não dava pra saber direito. Eu achava que as ligações é que não estavam muito boas.
Findos três meses e alguns dias ela voltou. Fui esperá-la no aeroporto e quase não a reconheci. Estava uma verdadeira gueixa. Dentro de um quimono estampado, calçava umas sandálias, tipo essas que a gente chama de havaianas, mas que na verdade surgiram no Japão. Os cabelos enrolados atrás, numa espécie de coque, eram transpassados por vários espetos de madeira. E aquele andar miudinho? Eu não sabia se ria ou se sentia pena da Idalina.
No táxi, a caminho de casa, eu já tive a percepção de que a coisas nunca mais seriam as mesmas entre nós. Pra começar, ela não havia propriamente aprendido o japonês, mas esquecera consideravelmente o idioma pátrio. Por exemplo: ao me contar que havia visto um jovem músico se apresentando numa casa noturna, em Tóquio, não soube dizer o nome do instrumento, mas me fez ver com as mãos que era um piano. Naquela mesma noite, eu percebi, também, que ela não sabia mais os nomes de algumas das coisas mais corriqueiras no seu cotidiano. Não conseguia mais nominar em nossa língua, coisas como xícara, cadeira ou vaso sanitário, por assim dizer. Não posso afirmar que a nossa comunicação, antes, era um primor, mas, agora, ser tornara quase impossível. Pensei que aquilo passaria com o tempo, mas vieram dias, semanas e até alguns meses, sem que Idalina voltasse a ser como era. Suas frases eram um emaranhado de português estropiado com japonês mal aprendido. E sempre vestida de gueixa, a andar apertadinho pelo meio da casa.
Mas, o pior veio depois. Idalina deu de reclamar do tamanho do meu membro. Me dizia que eu pareço um cavalo e que a machucava muito na hora do amor. Devo admitir que, neste ponto, eu nunca fui modesto, mas também não era nenhum superdotado. Posso garantir, ainda, que ele não deve ter crescido um milímetro sequer na ausência dela, como garanto que ela não reclamava disso antes. Com esse argumento cretino, a mulher passou a me evitar. Isso foi me irritando, me tirando o sono, até que numa noite eu explodi. Dei-lhe um esporro em regra, tentando botar ordem naquela confusão. Foi quando Idalina pulou da cama e, em posição de karateca, soltou um Haaaa! tão tenebroso, que deve ter acordado boa parte da vizinhança. De puto que fiquei, também me pus de pé. E sabe o que aconteceu? Idalina partiu pra cima de mim, com as mãos posicionadas em dois cutelos.
Só lembro que a primeira porrada foi na clavícula esquerda, que ficou esfacelada. Quase simultaneamente, mais duas cuteladas nas costelas, quebrando várias em cada lado. Acho que ao cair desacordado, joguei as pernas pra cima, o que ela aproveitou pra me fraturar a direita em dois lugares. Soube depois, que foi ela mesma quem chamou a ambulância, contando à equipe de saúde que eu havia caído de cima do armário, onde subira pra fazer uma demonstração de acrobacia. Demorei a entender como os caras tinham acreditado numa história dessas. Cheguei ao hospital em estado tão deplorável, que tive de tomar anestesia geral, pra que pudessem ministrar os procedimentos médicos.
Quando voltei a mim, na noite seguinte, estava atordoado. Sentia dor por todo o corpo, que estava engessado em cerca de 70%. Uma moça, muito atenciosa por sinal, fazia curativo no meu órgão genital, que também doía muito. Duas vezes por dia, uma enfermeira tomava os mesmos cuidados, sem que eu entendesse exatamente o que acontecera. Eu já li que na prática das artes marciais, não é permitido atacar o adversário naquela região que costumamos chamar de “países baixos”. Mas, convenhamos, Idalina está louca e, tomada de ira como estava, não devia ter levado em conta tais instruções. A julgar pela intensidade da dor que eu sentia, passei a imaginar a violência da cutelada que ela havia aplicado em meu pobre pênis.
Só alguns dias depois é que fiquei sabendo, por um companheiro de enfermaria já de alta, que minha mulher havia me visitado enquanto eu estava sob o efeito da anestesia. E pela conversa que ele ouviu dela com o doutor Onofre, ela havia premeditado a agressão, bem como o meu ingresso naquele hospital. E disse mais o ex-paciente: Idalina, mancomunada com aquele médico inescrupuloso (que há milhares deles por aí), mandara suprimir oito centímetros do meu membro, pra que ficasse do tamanho do pau do Kitagawa, um japonês safado que comeu ela, em Nagazáki.
Doutor, eu sei que o senhor é um profissional renomado, que o seu trabalho, como cirurgião plástico, é muito caro. Mas pode me restituir os oito centímetros que me roubaram, que eu prometo pagar-lhe o valor cobrado. É só o tempo de receber a indenização por perdas e danos, além de mutilação, que estou exigindo da Idalina e do tal doutorzinho na justiça. Pode acreditar, o juiz vai dar a sentença nos próximos três ou quatro meses.
09/08/2010

MEDO

“Não tenham medo daqueles que matam o corpo e não podem matar a alma”. (Jesus Cristo – Mateus 10.28)


“Pr‘onde vocês vão?” – quis saber o motorista. “Para um festival de música” – respondeu Márjorie, exibindo o melhor do seu sorriso encantador. Percebi de pronto, que não era aquela a resposta que ele esperava e me antecipei, explicando que íamos para Anobom, em cujo estádio municipal haveria um festival de rock. O homem – bem como os seus dois ajudantes – examinou Márjorie de alto a baixo, sem a menor preocupação em ser discreto em respeito à minha presença. E depois, sentenciou: “Tô indo pra José Pedra, uma cidade bem antes, mas, se vocês quiserem...”. Olhou fixamente para o decote da blusa de Márjorie e prosseguiu: “Só que vão ter que viajar na carroceria, porque, aqui, na cabine...”. Não completou a frase, mas se fez entender indicando com um gesto de cabeça os dois companheiros de viagem. “Tudo bem” – respondi por mim e por ela.
Agora, se me permite, deixa-me falar um pouco de Márjorie. Era linda de cara e de corpo; de corpo e de alma. A pele morena e os cabelos levemente cacheados, formavam um conjunto perfeito com seus olhos verdes, sempre ágeis, como se quisessem captar todas as imagens disponíveis no ambiente a cada olhar. Não bastassem esses atrativos, a boca se destacava no rosto, em razão dos lábios carnudos, úmidos e naturalmente vermelhos, que se abariam num sorriso envolvente, exibindo dentes muito brancos, saudáveis e simétricos. O seu ar de fêmea fogosa, permanentemente no cio, fazia nossos amigos admitirem que ela havia me conquistado na cama, o que, aliás, não era mentira. Porém, o que quase ninguém acreditava é que foi o seu sorriso que me fez irremediavelmente apaixonado, desde o primeiro momento em que nos vimos, em um vernissage no Museu de Arte Moderna do Rio.
E olhe que eu ainda não falei do corpo. Ah, o corpo era um detalhe à parte. Muitas misses ou símbolos sexuais, que enfeitam capas e miolos de revistas masculinas, ficam-lhe a dever. Curvas e pernas perfeitas; seios e quadris proporcionais ao seu porte mediano. Se nos lugares em que chegava, trajando vestido ou calças compridas, fazia o maior sucesso, era na praia, de biquíni, que chamava a si todos os olhares e sofria toda a sorte de assédio. O verbo “sofrer”, talvez nem seja apropriado para este caso. É que Márjorie, com seu espírito elevado, não dava a menor importância aos elogios que a sua matéria suscitava. Não odiava o corpo, é verdade, como certas mulheres consideradas monumentos. Até porque, sua espiritualidade não permitia odiar aquilo que Deus lhe dera. Amava-se, sem idolatria ou culto à matéria, e era sensual por seus dotes naturais: nada de caras e bocas, para provocar a libido de quem quer que fosse.
Não poderia falar de Márjorie, sem destacar os seus dotes intelectuais. Formada em Ciências Sociais, falava fluentemente várias línguas, inclusive a alemã, que aprendera na adolescência, para ler Marx e Brecht no original. Durante a ditadura militar, engajou-se num grupo de resistência, logo desbaratado pela repressão. Com a morte e a prisão de muitos dos seus companheiros, ela desencantou-se com a luta armada e aderiu sem reservas ao movimento hippie, que florescia no Brasil, no final dos anos 60. Foi por essa época, que despertou para as coisas espirituais, quando passou a questionar o materialismo dialético e a autenticidade do laicato, num Estado oficialmente ateu. Seus ex-companheiros de luta, não entendiam tamanha mudança e achavam que ela havia enlouquecido, já que nos poucos encontros que manteve com eles, desde então, falou-lhes abertamente de suas experiências com a maconha e o LSD.
Já sei até o que você está pensando. O que uma mulher, com tantos atributos físico-intelecto-espirituais estava fazendo ao meu lado? Confesso que eu também refleti sobre isso, muitas vezes. Quer saber se eu tinha ciúmes? No princípio, sim; mas, com o tempo, me convenci de que era inteiramente correspondido na intensidade do meu amor, pois muitas foram as provas que ela me deu. Assim, passei a achar natural Márjorie ser olhada do jeito que a olhavam e assediada com tanta insistência. Só as cantadas grosseiras, que também não faltavam, é que me deixavam irritado. Mas isso, quando chegavam ao meu conhecimento, porque, normalmente, ela se utilizava de um jeito todo seu de descartar os chatos e os inconvenientes. Assim, acabei perdendo a insegurança, o medo de perdê-la para outro cara.
Tão logo subimos à carroceria, o motorista deu a partida, com um solavanco. Acomodamos nossas mochilas na parte da frente, junto à cabine, a fim de apoiar as costas, e sentamo-nos. A estrada era mal conservada, com uma só pista em mão dupla, praticamente desabitada em ambos os lados. Só de quando em quando, víamos uma casa, uma porteira de fazenda, um morador da localidade puxando um burro, montado numa bicicleta ou carregando um cesto na cabeça. Mesmo os outdoors, tão freqüentes nas rodovias, eram raros ali. A monotonia da paisagem tornou a viagem cansativa. Principalmente, com a chegada da noite, que não demorou. Agora, nem mesmo o cenário já descrito era possível perceber, em meio àquela escuridão, entrecortada, vez por outra, pelos faróis dos veículos que nos ultrapassavam ou trafegavam em sentido contrário. Exaustos, resolvemos deitar. Márjorie dormiu logo, mas eu permaneci acordado mais um tempo, contemplando o céu, que estava, a exemplo da estrada, escasso de luminosidade.
Poderia dizer, com boa margem de acerto, que apenas cinco estrelas eram perceptíveis aos olhos humanos naquela noite. Pelo menos, para quem se achava, como eu, observando o firmamento naquela estrada. Passei a observar uma a uma, tentando avaliar, a partir do seu próprio brilho, a distância que nos separava, no tempo e no espaço. Evidentemente que não cheguei a nenhuma conclusão quanto a isto, até porque sou completamente ignorante em Astronomia. Contudo, uma das estrelas chamou-me a atenção pela intensidade do seu foco, o que sugeria maior proximidade com a Terra que as demais. Fiquei longo tempo contemplando-a, buscando adivinhar a sua localização, em meio a não sei quantas galáxias, e me perguntando que tipo de influência ela poderia estar exercendo sobre o nosso planeta, naquele exato momento.
Cansado de estar deitado de costas, virei-me para o lado, abracei Márjorie com ternura e adormeci. Não sei se muitas horas ou poucos minutos depois, fui acordado por ela, que me chamava a atenção para a estranheza do lugar onde estávamos. Erguendo um pouco a cabeça, olhei por sobre a grade da carroceria e concordei. O caminhão estava estacionado numa rua estreita, semi-iluminada por umas poucas lâmpadas, instaladas na fachada de um prédio de aspecto piramidal. Em seguida, desembarcamos para obter informações sobre a nossa localização e a possibilidade de prosseguirmos ou não a viagem naquela carona.
Uma vez no solo, pudemos ver melhor: a rua seguia o padrão da rodovia por onde trafegamos nas últimas horas, ou seja, fora do alcance daquelas lâmpadas, tudo o mais era breu. Não se divisava nada, cerca de trinta metros além do prédio piramidal. A fachada do prédio era, na verdade, um imenso triângulo, sem porta ou janela, com uns 25 metros de base e sabe-se lá quantos metros de altura, já que o seu ápice perdia-se na escuridão, em direção ao céu. À frente do nosso caminhão, dois outros achavam-se estacionados, e enquanto observávamos o ambiente éramos observados por um grupo de homens à porta de uma birosca, entre os quais estavam o nosso motorista e seus dois ajudantes.
“Aqui é José Pedra” – informou o motorista, acrescentando que dali voltaria ao ponto de partida e que, se quiséssemos, poderíamos pegar uma carona para Anobom na estrada por onde viemos, “que fica a uns três quilômetros daqui”. Disse mais: “Vou carregar o caminhão lá pela madrugada e só então volto a tomar a rodovia”. Enquanto dialogávamos, pude perceber os olhares que os circunstantes lançavam para Márjorie. Não sei de onde, surgiu de repente um grupo de cinco meninos, que, de forma provocativa, pelo menos para o meu entendimento, passaram a nos rodear cantando: “Ó Inácio, ó Inácio/mulher parida não come/ó Inácio, ó Inácio/farinha no mesmo dia...”.
A proposta de Márjorie foi perfeita. Pegaríamos nossa bagagem e marcharíamos para a estrada, imediatamente, apesar da escuridão e do nosso total desconhecimento do terreno. Voltei, então, à carroceria, peguei as mochilas e passei para ela, que as acomodou junto ao muro do prédio. Quando nos preparávamos para sair, um homem moreno, com cerca de quarenta anos, aproximou-se de nós e quis saber de onde vínhamos e para aonde íamos. Satisfeita a sua curiosidade, ele nos perguntou se não queríamos tomar uma garapa. “Garapa?!?” – estranhou minha mulher, sulista arraigada, a quem expliquei que se tratava de algum suco, caldo-de-cana ou coisa assim. Ela declinou do convite, com a minha anuência, mas o homem insistiu. Silêncio da parte dela e dúvida, da minha. Convite reiterado, achei por bem aceitar, para não ser grosseiro. Quis levar a bagagem conosco, mas ele disse que não precisava: “Aqui, ninguém mexe” – garantiu.
No momento seguinte, o homem, que disse chamar-se Raimundo, desatou o cinto, liberando um arco de arame, em que se achavam enfileiradas inúmeras chaves. Destas, separou uma, com a qual abriu o portão de acesso ao prédio, aonde funcionava, segundo ele, uma empresa de beneficiamento de calcário. Tão logo entramos, o portão foi novamente trancado à chave, procedimento que se repetiu, depois que ultrapassamos uma porta de grades, revestida com chapas de aço. Embora estranhando a atitude do nosso anfitrião, só passei a desconfiar do seu zelo extremado com a segurança do local, quando teve o mesmo cuidado no próximo portão. Este, por sinal, além da fechadura, ainda contava com o reforço de uma corrente com cadeado.
Estávamos, agora, num longo corredor, igualmente mal iluminado. Enquanto o homem dava várias voltas na corrente, olhei para Márjorie e não gostei da expressão apreensiva do seu rosto. Tive ímpeto de desistir da garapa, mas considerei que Raimundo não concordaria. Além disso, experiências anteriores haviam me ensinado, que devemos evitar, o quanto possível, a demonstração do nosso medo. Por isso, quando o cicerone seguiu em frente, resolvi acompanhá-lo.A fim de estimular minha mulher a fazer o mesmo, tomei-a pela mão, que estava úmida de suor. Se até aqui eu tinha alguma dúvida de que algo desagradável nos esperava, esta dissipou-se em segundos.
O corredor terminava no topo de uma escadaria de madeira, que dava acesso ao refeitório dos operários. Naquele momento, cerca de oito horas da noite, não menos que uns cinqüenta homens jantavam, ao mesmo tempo em que conversavam animadamente. As imagens daqueles peões comendo lá em baixo, na maior algazarra, nos fez parar instintivamente. E a nossa presença no alto da escada produziu reação semelhante, ou seja, todos pararam de comer e falar e ficaram nos olhando. Por alguns segundos, não se ouvia nenhum ruído, a não ser o do motor da velha geladeira comercial, instalada a um canto do amplo salão. A mão de Márjorie, de tão suada, tornou-se escorregadia, a ponto de eu não conseguir mantê-la dentro da minha mão fechada. Olhei em volta, e não vi mais o homem que nos trouxera até ali.
Em dado momento, um dos peões cochichou com os companheiros de sua mesa, e estes desataram a rir. O riso deles foi contagiando os demais, e em pouco tempo todos riam. Um riso nervoso, meio caricatural, um tanto forçado da parte de alguns, foi evoluindo... evoluindo... até explodir numa gargalhada uníssona, estrepitosa. Estávamos petrificados e assim permanecemos, mesmo quando alguns operários, levantando-se, caminharam lentamente em nossa direção. Enquanto venciam cada um dos degraus, comecei a imaginar o que iria acontecer. Eles tentariam estuprar a minha Márjorie, e eu – diferentemente do levita que entregou a sua mulher aos homens de Gibeá (Juízes 19.22-28) – tentaria impedir que isto acontecesse, mesmo com o sacrifício da própria vida.
De repente, o melhor de mim, que se dispunha a morrer em defesa da mulher amada, entrou em luta contra um sentimento mesquinho, segundo o qual não valeria a pena o sacrifício. Afinal, minha morte não iria demovê-los dos seus maus intentos, e ela sofreria muito mais, quando tudo acabasse, se não pudesse contar com o meu apoio moral e psicológico, tão necessário à superação do trauma. Imobilizado como estava, acredito que só interiormente eu tenha sacudido a cabeça, para espantar esses pensamentos. Mas não o consegui. E se por acaso ela gostasse de ser violentada? Quem sabe se toda aquela sensualidade, que eu via como algo natural em Márjorie, não escondia um desejo latente de ser penetrada por vários homens, numa noite de orgia?
Lembro-me que engoli em seco, quando percebi que alguns deles já haviam alcançado o degrau imediatamente inferior ao patamar em que estávamos. Márjorie conseguiu quebrar a nossa imobilidade, correndo para trás de mim, buscando proteger-se. Pensei em recorrer a um argumento tolo: lembrá-los de que sexo após as refeições costuma ser fatal, mas desisti, com uma ponta de vergonha pela idéia ridícula. Um deles me empurrou violentamente para um lado, me desequilibrando. Ao cair no chão, deixei Márjorie completamente exposta. E logo, o que me empurrou segurou seu queixo com força, trazendo-a para junto de si, ao mesmo tempo em que se preparava para beijá-la. Antes que sua boca tocasse os lábios dela, levantei-me, parti pra cima dele e vi, com espanto, que ele se transformara em outro homem.
Creio que a transfiguração tenha provocado em mim um estado de confusão mental, que não me deixava mais discernir quem era quem, em meio àquela balbúrdia. Mesmo assim, vi quando dois deles tomaram Márjorie pelos pulsos e tornozelos e começaram a descer a escada. Tentei romper a barreira que os demais peões formaram para me interceptar, a fim de tirar minha mulher das mãos daqueles monstros. Mas, aí, ouvi alguém gritar: “Tá aqui a ‘zagaia! Tá aqui a ‘zagaia!” E abriram caminho, para que passasse um indivíduo, portando um instrumento metálico semelhante a um garfo de dois dentes, com cabo comprido de madeira. Ainda com a mente embotada, não saí do lugar, mesmo quando o agressor investiu contra o meu peito. O máximo que consegui, foi proteger a região torácica com as mãos, sendo ambas perfuradas pela arma pontiaguda.
Mal tive tempo de olhar minhas mãos ensangüentadas, quando um outro indivíduo tomou emprestada a ‘zagaia e cravou-a em meus dois pés, que ficaram presos ao chão. A força com que as pontas do bidente penetraram no soalho fez com que seu cabo reverberasse, dando-me sucessivas pancadas na testa e no nariz, que também começaram a sangrar. Em seguida, fui deixado só, no patamar, e todos desceram para o refeitório, onde Márjorie era preparada para servir de repasto sexual àquela turba ensandecida. Difícil descrever a angústia de ver a minha amada jogada sobre uma das mesas, se debatendo para evitar que a despissem. Tentei desprender a arma do chão, para liberar meus pés, mas os ferimentos das mãos impediam. Além da dor excessiva, o sangue tornava o cabo de madeira escorregadio.
Um outro homem emergiu daquele festim medieval e veio a mim. Olhou-me detidamente com expressão piedosa, sacudiu a cabeça para ambos os lados e disse: “Isto não se faz”. Na seqüência, despregou a ‘zagaia do chão, soltando os meus pés. Ainda em silêncio, mostrou-me com um gesto a outra extremidade do cabo da arma, também pontiaguda. Ato contínuo, cravou aquele estoque no meu lado esquerdo, sob as costelas, tornou a fincar o bidente no soalho e voltou para junto dos seus companheiros.
Fiquei alguns instantes por ali, observando meu corpo estrepado naquele pau de ponta pra cima. Um grito lancinante (que reconheci como sendo emitido por Márjorie) cortou o ar. Comecei, então, a forçar o cabo da ‘zagaia para baixo, ao mesmo tempo em que impulsionava meu corpo para o alto. Com espanto, verifiquei que as mãos já não doíam, o que facilitou a tarefa de desprender-me daquele estoque. Uma vez livre, me inteirei do que se passava no refeitório. Aglomerados em volta da mesa, os peões cantavam e batiam palmas, num clima festivo:
“...Ó Inácio, ó Inácio
pois se comê ela morre
ó Inácio, ó Inácio
e seu filho ela não cria.
Mas se não fosse os homi
as muleres não paria...”
Não, eu não queria acreditar no que meus olhos viam, mas era a pura verdade. Em meio àquela farra, aquele tributo à barbárie, à selvageria, Márjori levantou-se e pôs-se a dançar, nua sobre a mesa, para o gáudio dos insensatos, que a aplaudiam freneticamente. No primeiro momento, ela estava de costas para mim, rebolando as ancas empinadas e girando a calcinha enfiada no dedo
indicador da mão direita. Depois, girou sobre os pés descalços, exibindo um frontal de causar impacto, em razão do brilho que emanava do seu corpo, através de cinco estrelas, assim dispostas: duas sobre os olhos, outras duas sobre os mamilos e a maior delas cobria-lhe a vagina. “Ah, menos mal – pensei -, pois assim esses devassos não têm o prazer de apreciar a sua nudez completa”.
Do patamar onde eu estava, tentei dizer algo para a minha mulher, mas não conseguia emitir nenhum som, por mais que as palavras se formassem em minha boca. E mesmo que eu conseguisse falar, seria ouvido naquele ambiente estrepitoso? Mais ainda: ocupada como estava em entreter aqueles abutres, ela estaria a fim de me escutar? Difícil saber. Mesmo assim, continuei tentando, até que consegui bradar seu nome com tal volume de voz, que não só me fiz ouvir, como impus o mais completo silêncio ao local. Desci as escadas correndo ao encontro de Márjorie e ajudei-a a descer da mesa. Ela estava inteiramente vestida, com a mesma roupa, aliás, que estivera durante toda a viagem. Abraçamo-nos e beijamo-nos longamente, aproveitando a ausência de terceiros, pois o refeitório estava vazio. A bem da verdade, quase vazio, pois, ao virarmo-nos deparamos com Raimundo ao pé da escada. Ao seu lado, um enorme caldeirão, e com a mão estendida ele nos oferecia duas canecas de suco de caju, geladíssimo.
A primeira caneca, bebemos quase que de um só fôlego; a segunda e a terceira, mais lentamente; às duas últimas, nos declaramos satisfeitos. Raimundo sorriu e, em silêncio, retomou o caminho que nos levaria de volta à rua, tendo sempre o cuidado de trancar cada porta por onde passávamos. Uma vez fora da empresa, vimos que tudo estava exatamente como havíamos deixado. Os homens conversando à porta da birosca, os três caminhões estacionados em fila indiana, os cinco meninos brincando e as nossas mochilas encostadas ao muro. Quando passamos pelos meninos, percebi que nos olhavam com ar zombeteiro, e ouvi dois deles fazerem comentários acerca dos peitos de Márjorie, tendo o mais velho falado, entre dentes: “Eu é que se dei melhor, tava bem na priquita”.
De posse da nossa bagagem, demos início à caminhada de retorno à rodovia. Não foram necessários muitos passos, para que nos embrenhássemos na escuridão, saindo do alcance da visão de todos. Porém, mesmo à distância, dava para ouvir os meninos cantando:
“...Ó Inácio, ó Inácio
e o seu filho ela não cria.
Se não fosse as muleres
Os homi não fazia...”.
Abril de 2003

sábado, 16 de janeiro de 2010

A minha cadela estava no cio

Paulo César do Espírito Santo era o nome do cara. Tinha a minha idade e morava no Parque Lafayette, num sobrado de esquina – Nilo Peçanha com Gonçalves Dias. Foi a mistura mais perfeita que já conheci de intelectual com delinquente. Bem nascido, seu pai era empresário em Petrópolis e o tio, deputado estadual por Caxias, com vários mandatos.

Gostava muito de ler, o que lhe permitia discutir diversos assuntos, e tinha um discurso contundente na defesa de suas idéias, muitas delas beirando o fascismo. Mas era um cara engraçado. No item profissão, se apresentava como relações públicas, embora eu não me lembre de vê-lo jamais exercendo tais funções ou qualquer outra atividade lícita. Vivia mesmo de armação.

Costumava dizer que boa parte das terras do bairro onde morava pertencera à sua família. Por conta disso, se apoderou de um terreno na Nilo Peçanha, vizinho àquele parque de diversões que sumiu recentemente do cenário caxiense. Ali, ele armou uma espécie de mafuá, misto de ferro-velho, boca de fumo e abatedouro. E era ali, também, que, em meio a uma porrada de tralhas, recebia os amigos, entre os quais me incluía, pra dar dois e bater papo. Vender maconha, ele vendia, sim, mas “só pros chegados” – como frisava sempre, entre um baseado e outro, que oferecia como amostra.

Numa das muitas idas à casa de Paulo César, descobri uma família que tinha um Doberman marrom. Era a primeira vez que eu via um cão daquela raça com esta cor. Como meu pai tinha uma cadela igual (mas preta, de nome Kelly), que estava no cio, resolvi sondar as possibilidades de um cruzamento. O adolescente que se apresentou como dono do animal concordou, desde que eu a deixasse lá por alguns dias. Fiquei de fazê-lo, na manhã seguinte.

O meu amigo, quando soube dessa história, prontificou-se a colaborar com o frete. Ele tinha um carro velho (Karmann-Ghia), que pegava muito bem no tranco e tinha quase sempre uma das portas (quando não as duas) emperrada. Combinamos, assim, que eu passaria pelo mafuá, por volta das 10. Mas, antes de pegar a cachorra em minha casa, passaríamos no local para confirmar o acasalamento. 

Tudo saiu mais ou menos como combinado, só o que melou foi justamente o acasalamento. Pra começar, fui recebido pela mãe do adolescente, que já tinha conhecimento de tudo e queria “algumas informações” sobre a cadela. “Tem pedigri?”. Sim, foi a minha resposta, a mesma, aliás, para a pergunta seguinte: “Tem as orelhas operadas e o rabo tosado?”. Mas aí... não, a Kelly não era amestrada e a mulher fez um “Huummm!...” de reprovação. O cão dela o era e ela fez questão de comprovar. Mandou que o filho trouxesse o animal, no que foi atendida.

 O menino mandou que o cachorro deitasse, e ele não obedeceu. Ordem reiterada, mas o bicho não lhe deu a mínima. O adolescente, então, deu de mão num porrete que se achava próximo e o fez cantar no lombo do Doberman. Aí, ele cedeu. Imediatamente me lembrei de alguns companheiros, que, em situação semelhante, revelaram no Dops suas atividades subversivas. Pra minha surpresa, ainda faltava a pergunta final. A mulher quis saber:

- Meu filho já combinou o preço com o senhor?

Diante da minha cara de meu Deus, que é isso? a criatura explicou que cobrava uma grana pela porra do seu cachorro. Algo em torno de 300 reais, na moeda da época. Fiquei pasmo. Foi quando Paulo César, que até então se mantivera à parte, encostado no carro, resolveu entrar na conversa. E a cena que se desenrolou, a partir daí, foi esta:

- Madame, a senhora vai me desculpar... eu não tenho cachorra... a minha participação nessa história é só fazer o carreto pro meu amigo. Mas, não acha que 300 pratas tá um pouco salgado, não?

A mulher:

- Que nada. Há quem cobre muito mais. Diz aí, meu filho: quanto é que estão cobrando por aí?

O menino:

- Ah, uns 500 reais.

Paulo César, arrematando:

- Ora, madame, a senhora vai me desculpar de novo. Mas, se eu tivesse 500 pau sobrando no meu bolso, neste momento, não iria patrocinar foda de cachorro. Quem ia foder era eu.

Romance carioca

Para Arménio Dias Filho

Como já dizia aquele samba, Maria da Penha morava em Maria da Graça, trabalhava na Glória e estudava no Bairro de Fátima. Foi ali que conheceu um certo professor Gabizo, que ao vê-la pela vez primeira, comentou consigo mesmo: “Nossa, mas que moça bonita”. Por sua vez, ela também notou que ele era um moço bem-apessoado, cujos traços másculos até lembravam o Lucas, personagem de uma novela a que assistira durante a adolescência.

Certa noite, enquanto circulava pelas dependências do colégio, durante o recreio, Penha teve uma visão que a fez estremecer. É que no corredor, junto à porta de uma sala, Gabizo conversava animadamente com dona Marta, secretária executiva do estabelecimento. Seu olhar cruzou com o do professor, e este cruzamento foi de tal forma significativo, que até interrompeu o circular da Penha. Despedindo-se da funcionária, o rapaz foi ao seu encontro e apresentou-se : “Olá! Meu nome é Gabizo. E você, como se chama?”. “Penha” – disse ela, meio encabulada. “Encantado!” – tornou o professor, beijando sua mão.

Pronto, estava assim lançada a pedra fundamental, do que podemos chamar de um amor à primeira vista – à primeira boa vista, eu até diria. A partir dali, os dois passaram a ser vistos sempre juntinhos, pelos cantos, trocando carícias e juras de amor eterno. Coisa de causar ciúmes a uma tal de Paula Mattos, apaixonada pelo rapaz. Contudo, Joana Angélica e Maria Quitéria – as duas melhores amigas da Penha – davam a maior força. Embora também sonhassem com os carinhos do professor, torciam pelo bom sucesso daquele romance.

A essa altura, Penha já nem lembrava mais do Cosme Velho – que era como chamavam o velho Cosme, sua antiga paixão, com vinte e tantos anos mais vividos do que ela. Em compensação, Gabizo também já não era mais o mesmo. O outrora mulherengo, que não fazia nenhuma triagem entre as fêmeas que conquistava, com as quais era visto entrando ou saindo pela boca do mato de um terreno baldio, agora só tinha olhos para a sua amada.

Por mais que para alguns parecesse precipitado, os dois já faziam planos para o futuro. Penha – romântica pelo corpo todo – sonhava com o dia em que se vestiria toda de branco, com uma grinalda na cabeça e tendo às mãos um buquê de flores de laranjeiras. Quanto à cerimônia, ela não abria mão: teria que ser na matriz de Santa Teresa, em sua terra natal, celebrada pelo padre Miguel, o vigário geral da paróquia onde havia sido batizada. O rapaz concordava com tudo. Afinal, ele também não via a hora de sacramentar o seu compromisso com a moça, aos pés da Santa Cruz, sob as bênçãos do Santo Cristo.

Porém, como já dizia um outro samba, a vida não quer ver ninguém de braço dado. E as diferenças que marcavam a vivência de cada um, foram cavando entre ambos um buraco – um buraco quente. Pra começar, Gabizo era Flamengo e Penha, Botafogo. No carnaval, ele torcia pela Mangueira e ela, Vila Isabel. Mas isso não causava grandes transtornos, pois a moça, em matéria de futebol e samba, não era uma torcedora das mais convictas. Também na questão religiosa, o casal não se afinava. A mulher, uma católica fervorosa, era devota de todos os santos, e trazia ao pescoço um cordão com a imagem do Santíssimo, crucificado. Já o homem, pouco afeito à igreja, só lembrava de rezar nos momentos de aperto. Aí, era uma vela para São Cristóvão aqui, outra pra São Januário acolá, sem falar nas inúmeras promessas que fez a São Clemente – que jamais pagou, diga-se de passagem. Mas nem isso tinha maior importância, pois ela acreditava que, com o tempo, conseguiria mudá-lo. Neste sentido, aliás, rezava todas as noites a São Conrado.

Agora, barra, mesmo, era aturar o desnível cultural. Enquanto Gabizo, professor de Literatura, gostava de falar sobre os clássicos brasileiros, Penha, de poucas letras, ignorava Coelho Netto e passava ao largo do Machado. Certa vez, chegou a jurar por Nossa Senhora de Copacabana, que viu uma velhinha dando milho às Pombas, de Raimundo Correia, na Praça Serzedêlo idem.

Gabizo era também versado em História. Sabia tudo sobre D. Pedro II, Leopoldina, Barão de Mauá e Visconde de Albuquerque. Sabia até quem foi o Braz de Pina e que o General Glicério não era militar. Mas não adiantava falar dessa gente, que ela desconhecia. Deodoro, Marechal Hermes, Prefeito Bento Ribeiro, Epitácio Pessoa, Rio Branco, Olympio de Mello, Frei Caneca... eram todos ilustres desconhecidos.

Tanta ignorância, irritava o rapaz. Tanta erudição, enchia o saco da moça. E passaram a brigar, como se fossem dois irmãos. Então, no dia em que ela perguntou se Mariz e Barros tinham sido precursores de Chitãozinho e Xororó, foi a conta. Gabizo chutou o pau-da-bandeira e disse: “Você... você é uma mulher de casca dura, parece um jacaré, não absorve nada do que eu falo”.

Penha desfez-se em pranto e aproveitou para descer o barraco, xingando-o, sem dó nem piedade. “Some da minha vida, seu Museu Histórico, seu rato molhado de livraria, seu nascido na Vila Mimosa. Tu – como diz o outro – tá com complexo do alemão, metido a filósofo. Vai procurar uma mulher do seu nível, que saiba inglês e conheça Geografia. A Praça Mauá está assim delas, ó... Ou será que tu já não é mais chegado à fruta? Então, vai pra Cinelândia ou pra Rua Augusto Severo, mas some daqui e me deixa em paz”.

Gabizo virou as costas e foi embora. Não para os lugares que ela havia mandado, é claro, mas para Campo Grande, onde morava. Penha, ao vê-lo se afastando, ficou desolada. Seus olhos pareciam a Lagoa Rodrigo de Freitas, de onde escorria uma lágrima quente, que deslizava sobre o seu rosto, como se fosse um rio comprido.

Maria da Penha, que morava em Maria da Graça, trabalhava na Glória e estudava no Bairro de Fátima, tentando consolar-se a si mesma, deu de ombros, resignada: “É, não podia dar certo mesmo. Paciência!”.

Abril de 1997

Nota: O samba citado no primeiro parágrafo deste conto foi entreouvido pelo autor, em plena madrugada, na Cinelândia. Quanto ao outro samba (sexto parágrafo) tem por título , é de Monsueto Menezes e foi gravado por Helena de Lima, em 1963.


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