Para Arménio Dias Filho
Como já dizia aquele samba, Maria da Penha morava em Maria da Graça, trabalhava na Glória e estudava no Bairro de Fátima. Foi ali que conheceu um certo professor Gabizo, que ao vê-la pela vez primeira, comentou consigo mesmo: “Nossa, mas que moça bonita”. Por sua vez, ela também notou que ele era um moço bem-apessoado, cujos traços másculos até lembravam o Lucas, personagem de uma novela a que assistira durante a adolescência.
Certa noite, enquanto circulava pelas dependências do colégio, durante o recreio, Penha teve uma visão que a fez estremecer. É que no corredor, junto à porta de uma sala, Gabizo conversava animadamente com dona Marta, secretária executiva do estabelecimento. Seu olhar cruzou com o do professor, e este cruzamento foi de tal forma significativo, que até interrompeu o circular da Penha. Despedindo-se da funcionária, o rapaz foi ao seu encontro e apresentou-se : “Olá! Meu nome é Gabizo. E você, como se chama?”. “Penha” – disse ela, meio encabulada. “Encantado!” – tornou o professor, beijando sua mão.
Pronto, estava assim lançada a pedra fundamental, do que podemos chamar de um amor à primeira vista – à primeira boa vista, eu até diria. A partir dali, os dois passaram a ser vistos sempre juntinhos, pelos cantos, trocando carícias e juras de amor eterno. Coisa de causar ciúmes a uma tal de Paula Mattos, apaixonada pelo rapaz. Contudo, Joana Angélica e Maria Quitéria – as duas melhores amigas da Penha – davam a maior força. Embora também sonhassem com os carinhos do professor, torciam pelo bom sucesso daquele romance.
A essa altura, Penha já nem lembrava mais do Cosme Velho – que era como chamavam o velho Cosme, sua antiga paixão, com vinte e tantos anos mais vividos do que ela. Em compensação, Gabizo também já não era mais o mesmo. O outrora mulherengo, que não fazia nenhuma triagem entre as fêmeas que conquistava, com as quais era visto entrando ou saindo pela boca do mato de um terreno baldio, agora só tinha olhos para a sua amada.
Por mais que para alguns parecesse precipitado, os dois já faziam planos para o futuro. Penha – romântica pelo corpo todo – sonhava com o dia em que se vestiria toda de branco, com uma grinalda na cabeça e tendo às mãos um buquê de flores de laranjeiras. Quanto à cerimônia, ela não abria mão: teria que ser na matriz de Santa Teresa, em sua terra natal, celebrada pelo padre Miguel, o vigário geral da paróquia onde havia sido batizada. O rapaz concordava com tudo. Afinal, ele também não via a hora de sacramentar o seu compromisso com a moça, aos pés da Santa Cruz, sob as bênçãos do Santo Cristo.
Porém, como já dizia um outro samba, a vida não quer ver ninguém de braço dado. E as diferenças que marcavam a vivência de cada um, foram cavando entre ambos um buraco – um buraco quente. Pra começar, Gabizo era Flamengo e Penha, Botafogo. No carnaval, ele torcia pela Mangueira e ela, Vila Isabel. Mas isso não causava grandes transtornos, pois a moça, em matéria de futebol e samba, não era uma torcedora das mais convictas. Também na questão religiosa, o casal não se afinava. A mulher, uma católica fervorosa, era devota de todos os santos, e trazia ao pescoço um cordão com a imagem do Santíssimo, crucificado. Já o homem, pouco afeito à igreja, só lembrava de rezar nos momentos de aperto. Aí, era uma vela para São Cristóvão aqui, outra pra São Januário acolá, sem falar nas inúmeras promessas que fez a São Clemente – que jamais pagou, diga-se de passagem. Mas nem isso tinha maior importância, pois ela acreditava que, com o tempo, conseguiria mudá-lo. Neste sentido, aliás, rezava todas as noites a São Conrado.
Agora, barra, mesmo, era aturar o desnível cultural. Enquanto Gabizo, professor de Literatura, gostava de falar sobre os clássicos brasileiros, Penha, de poucas letras, ignorava Coelho Netto e passava ao largo do Machado. Certa vez, chegou a jurar por Nossa Senhora de Copacabana, que viu uma velhinha dando milho às Pombas, de Raimundo Correia, na Praça Serzedêlo idem.
Gabizo era também versado em História. Sabia tudo sobre D. Pedro II, Leopoldina, Barão de Mauá e Visconde de Albuquerque. Sabia até quem foi o Braz de Pina e que o General Glicério não era militar. Mas não adiantava falar dessa gente, que ela desconhecia. Deodoro, Marechal Hermes, Prefeito Bento Ribeiro, Epitácio Pessoa, Rio Branco, Olympio de Mello, Frei Caneca... eram todos ilustres desconhecidos.
Tanta ignorância, irritava o rapaz. Tanta erudição, enchia o saco da moça. E passaram a brigar, como se fossem dois irmãos. Então, no dia em que ela perguntou se Mariz e Barros tinham sido precursores de Chitãozinho e Xororó, foi a conta. Gabizo chutou o pau-da-bandeira e disse: “Você... você é uma mulher de casca dura, parece um jacaré, não absorve nada do que eu falo”.
Penha desfez-se em pranto e aproveitou para descer o barraco, xingando-o, sem dó nem piedade. “Some da minha vida, seu Museu Histórico, seu rato molhado de livraria, seu nascido na Vila Mimosa. Tu – como diz o outro – tá com complexo do alemão, metido a filósofo. Vai procurar uma mulher do seu nível, que saiba inglês e conheça Geografia. A Praça Mauá está assim delas, ó... Ou será que tu já não é mais chegado à fruta? Então, vai pra Cinelândia ou pra Rua Augusto Severo, mas some daqui e me deixa em paz”.
Gabizo virou as costas e foi embora. Não para os lugares que ela havia mandado, é claro, mas para Campo Grande, onde morava. Penha, ao vê-lo se afastando, ficou desolada. Seus olhos pareciam a Lagoa Rodrigo de Freitas, de onde escorria uma lágrima quente, que deslizava sobre o seu rosto, como se fosse um rio comprido.
Maria da Penha, que morava em Maria da Graça, trabalhava na Glória e estudava no Bairro de Fátima, tentando consolar-se a si mesma, deu de ombros, resignada: “É, não podia dar certo mesmo. Paciência!”.
Abril de 1997
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