sábado, 16 de janeiro de 2010

A minha cadela estava no cio

Paulo César do Espírito Santo era o nome do cara. Tinha a minha idade e morava no Parque Lafayette, num sobrado de esquina – Nilo Peçanha com Gonçalves Dias. Foi a mistura mais perfeita que já conheci de intelectual com delinquente. Bem nascido, seu pai era empresário em Petrópolis e o tio, deputado estadual por Caxias, com vários mandatos.

Gostava muito de ler, o que lhe permitia discutir diversos assuntos, e tinha um discurso contundente na defesa de suas idéias, muitas delas beirando o fascismo. Mas era um cara engraçado. No item profissão, se apresentava como relações públicas, embora eu não me lembre de vê-lo jamais exercendo tais funções ou qualquer outra atividade lícita. Vivia mesmo de armação.

Costumava dizer que boa parte das terras do bairro onde morava pertencera à sua família. Por conta disso, se apoderou de um terreno na Nilo Peçanha, vizinho àquele parque de diversões que sumiu recentemente do cenário caxiense. Ali, ele armou uma espécie de mafuá, misto de ferro-velho, boca de fumo e abatedouro. E era ali, também, que, em meio a uma porrada de tralhas, recebia os amigos, entre os quais me incluía, pra dar dois e bater papo. Vender maconha, ele vendia, sim, mas “só pros chegados” – como frisava sempre, entre um baseado e outro, que oferecia como amostra.

Numa das muitas idas à casa de Paulo César, descobri uma família que tinha um Doberman marrom. Era a primeira vez que eu via um cão daquela raça com esta cor. Como meu pai tinha uma cadela igual (mas preta, de nome Kelly), que estava no cio, resolvi sondar as possibilidades de um cruzamento. O adolescente que se apresentou como dono do animal concordou, desde que eu a deixasse lá por alguns dias. Fiquei de fazê-lo, na manhã seguinte.

O meu amigo, quando soube dessa história, prontificou-se a colaborar com o frete. Ele tinha um carro velho (Karmann-Ghia), que pegava muito bem no tranco e tinha quase sempre uma das portas (quando não as duas) emperrada. Combinamos, assim, que eu passaria pelo mafuá, por volta das 10. Mas, antes de pegar a cachorra em minha casa, passaríamos no local para confirmar o acasalamento. 

Tudo saiu mais ou menos como combinado, só o que melou foi justamente o acasalamento. Pra começar, fui recebido pela mãe do adolescente, que já tinha conhecimento de tudo e queria “algumas informações” sobre a cadela. “Tem pedigri?”. Sim, foi a minha resposta, a mesma, aliás, para a pergunta seguinte: “Tem as orelhas operadas e o rabo tosado?”. Mas aí... não, a Kelly não era amestrada e a mulher fez um “Huummm!...” de reprovação. O cão dela o era e ela fez questão de comprovar. Mandou que o filho trouxesse o animal, no que foi atendida.

 O menino mandou que o cachorro deitasse, e ele não obedeceu. Ordem reiterada, mas o bicho não lhe deu a mínima. O adolescente, então, deu de mão num porrete que se achava próximo e o fez cantar no lombo do Doberman. Aí, ele cedeu. Imediatamente me lembrei de alguns companheiros, que, em situação semelhante, revelaram no Dops suas atividades subversivas. Pra minha surpresa, ainda faltava a pergunta final. A mulher quis saber:

- Meu filho já combinou o preço com o senhor?

Diante da minha cara de meu Deus, que é isso? a criatura explicou que cobrava uma grana pela porra do seu cachorro. Algo em torno de 300 reais, na moeda da época. Fiquei pasmo. Foi quando Paulo César, que até então se mantivera à parte, encostado no carro, resolveu entrar na conversa. E a cena que se desenrolou, a partir daí, foi esta:

- Madame, a senhora vai me desculpar... eu não tenho cachorra... a minha participação nessa história é só fazer o carreto pro meu amigo. Mas, não acha que 300 pratas tá um pouco salgado, não?

A mulher:

- Que nada. Há quem cobre muito mais. Diz aí, meu filho: quanto é que estão cobrando por aí?

O menino:

- Ah, uns 500 reais.

Paulo César, arrematando:

- Ora, madame, a senhora vai me desculpar de novo. Mas, se eu tivesse 500 pau sobrando no meu bolso, neste momento, não iria patrocinar foda de cachorro. Quem ia foder era eu.

Romance carioca

Para Arménio Dias Filho

Como já dizia aquele samba, Maria da Penha morava em Maria da Graça, trabalhava na Glória e estudava no Bairro de Fátima. Foi ali que conheceu um certo professor Gabizo, que ao vê-la pela vez primeira, comentou consigo mesmo: “Nossa, mas que moça bonita”. Por sua vez, ela também notou que ele era um moço bem-apessoado, cujos traços másculos até lembravam o Lucas, personagem de uma novela a que assistira durante a adolescência.

Certa noite, enquanto circulava pelas dependências do colégio, durante o recreio, Penha teve uma visão que a fez estremecer. É que no corredor, junto à porta de uma sala, Gabizo conversava animadamente com dona Marta, secretária executiva do estabelecimento. Seu olhar cruzou com o do professor, e este cruzamento foi de tal forma significativo, que até interrompeu o circular da Penha. Despedindo-se da funcionária, o rapaz foi ao seu encontro e apresentou-se : “Olá! Meu nome é Gabizo. E você, como se chama?”. “Penha” – disse ela, meio encabulada. “Encantado!” – tornou o professor, beijando sua mão.

Pronto, estava assim lançada a pedra fundamental, do que podemos chamar de um amor à primeira vista – à primeira boa vista, eu até diria. A partir dali, os dois passaram a ser vistos sempre juntinhos, pelos cantos, trocando carícias e juras de amor eterno. Coisa de causar ciúmes a uma tal de Paula Mattos, apaixonada pelo rapaz. Contudo, Joana Angélica e Maria Quitéria – as duas melhores amigas da Penha – davam a maior força. Embora também sonhassem com os carinhos do professor, torciam pelo bom sucesso daquele romance.

A essa altura, Penha já nem lembrava mais do Cosme Velho – que era como chamavam o velho Cosme, sua antiga paixão, com vinte e tantos anos mais vividos do que ela. Em compensação, Gabizo também já não era mais o mesmo. O outrora mulherengo, que não fazia nenhuma triagem entre as fêmeas que conquistava, com as quais era visto entrando ou saindo pela boca do mato de um terreno baldio, agora só tinha olhos para a sua amada.

Por mais que para alguns parecesse precipitado, os dois já faziam planos para o futuro. Penha – romântica pelo corpo todo – sonhava com o dia em que se vestiria toda de branco, com uma grinalda na cabeça e tendo às mãos um buquê de flores de laranjeiras. Quanto à cerimônia, ela não abria mão: teria que ser na matriz de Santa Teresa, em sua terra natal, celebrada pelo padre Miguel, o vigário geral da paróquia onde havia sido batizada. O rapaz concordava com tudo. Afinal, ele também não via a hora de sacramentar o seu compromisso com a moça, aos pés da Santa Cruz, sob as bênçãos do Santo Cristo.

Porém, como já dizia um outro samba, a vida não quer ver ninguém de braço dado. E as diferenças que marcavam a vivência de cada um, foram cavando entre ambos um buraco – um buraco quente. Pra começar, Gabizo era Flamengo e Penha, Botafogo. No carnaval, ele torcia pela Mangueira e ela, Vila Isabel. Mas isso não causava grandes transtornos, pois a moça, em matéria de futebol e samba, não era uma torcedora das mais convictas. Também na questão religiosa, o casal não se afinava. A mulher, uma católica fervorosa, era devota de todos os santos, e trazia ao pescoço um cordão com a imagem do Santíssimo, crucificado. Já o homem, pouco afeito à igreja, só lembrava de rezar nos momentos de aperto. Aí, era uma vela para São Cristóvão aqui, outra pra São Januário acolá, sem falar nas inúmeras promessas que fez a São Clemente – que jamais pagou, diga-se de passagem. Mas nem isso tinha maior importância, pois ela acreditava que, com o tempo, conseguiria mudá-lo. Neste sentido, aliás, rezava todas as noites a São Conrado.

Agora, barra, mesmo, era aturar o desnível cultural. Enquanto Gabizo, professor de Literatura, gostava de falar sobre os clássicos brasileiros, Penha, de poucas letras, ignorava Coelho Netto e passava ao largo do Machado. Certa vez, chegou a jurar por Nossa Senhora de Copacabana, que viu uma velhinha dando milho às Pombas, de Raimundo Correia, na Praça Serzedêlo idem.

Gabizo era também versado em História. Sabia tudo sobre D. Pedro II, Leopoldina, Barão de Mauá e Visconde de Albuquerque. Sabia até quem foi o Braz de Pina e que o General Glicério não era militar. Mas não adiantava falar dessa gente, que ela desconhecia. Deodoro, Marechal Hermes, Prefeito Bento Ribeiro, Epitácio Pessoa, Rio Branco, Olympio de Mello, Frei Caneca... eram todos ilustres desconhecidos.

Tanta ignorância, irritava o rapaz. Tanta erudição, enchia o saco da moça. E passaram a brigar, como se fossem dois irmãos. Então, no dia em que ela perguntou se Mariz e Barros tinham sido precursores de Chitãozinho e Xororó, foi a conta. Gabizo chutou o pau-da-bandeira e disse: “Você... você é uma mulher de casca dura, parece um jacaré, não absorve nada do que eu falo”.

Penha desfez-se em pranto e aproveitou para descer o barraco, xingando-o, sem dó nem piedade. “Some da minha vida, seu Museu Histórico, seu rato molhado de livraria, seu nascido na Vila Mimosa. Tu – como diz o outro – tá com complexo do alemão, metido a filósofo. Vai procurar uma mulher do seu nível, que saiba inglês e conheça Geografia. A Praça Mauá está assim delas, ó... Ou será que tu já não é mais chegado à fruta? Então, vai pra Cinelândia ou pra Rua Augusto Severo, mas some daqui e me deixa em paz”.

Gabizo virou as costas e foi embora. Não para os lugares que ela havia mandado, é claro, mas para Campo Grande, onde morava. Penha, ao vê-lo se afastando, ficou desolada. Seus olhos pareciam a Lagoa Rodrigo de Freitas, de onde escorria uma lágrima quente, que deslizava sobre o seu rosto, como se fosse um rio comprido.

Maria da Penha, que morava em Maria da Graça, trabalhava na Glória e estudava no Bairro de Fátima, tentando consolar-se a si mesma, deu de ombros, resignada: “É, não podia dar certo mesmo. Paciência!”.

Abril de 1997

Nota: O samba citado no primeiro parágrafo deste conto foi entreouvido pelo autor, em plena madrugada, na Cinelândia. Quanto ao outro samba (sexto parágrafo) tem por título , é de Monsueto Menezes e foi gravado por Helena de Lima, em 1963.


Com Silmara – tendo ao fundo Iris de Paula e a filha dela, Mônica -, durante a posse de Beto Gaspari na presidência da Lira de Ouro. (07/01/09)

Ainda na Lira, na noite em que Beto foi possuído. (idem)

Duas coisas me parecem o fino da popularidade: virar piada de banheiro e ser caricaturado. Esta é do Tubarão. (01/08/09)

Agora, visto pela ótica do Yba.  (16/12/09)

Os loucos, doidos e malucos a que o Gordack se refere, somos nós mesmos. (29/12/09)

Com Yba, disfarçando a ansiedade da espera de um rango preparado por Nelsinho Pacheco. (08/01/10)

A gatinha chama-se Mariana. Além de linda, é super gente boa. No caso dela, ser gente boa é herança genética, já que ela é filha do meu amigo Luiz, um cabra bom da porra. A foto foi feita no Instituto Histórico, durante o lançamento do livro O coronel Elyseu e o seu tempo, de Rogério Torres. (03/12/09)

Com as atrizes Elaine Pernambuco e Fernanda Sales, no intervalo de um ensaio da peça Agora, sou eu. (06/12/09)

Eu, concentradíssimo...

... e elas, concentradíssimas também. (idem)

As meninas evoluindo, já com algumas falas na ponta da língua. (idem)

Desfrutando o prazer de morar numa mini reserva florestal urbana. (22/12/09)

Rir é bom pra cacete, né?

Êpa, surgiu uma favela no meio da reserva florestal? Miguel tá examinando. (idem)

Atenção! Ao exibir esta foto, verifique se não têm crianças no ambiente, pois a barriga de Marco Bomfim é obscena, indecorosa, indecente, imoral, libertina, lasciva e impudica. (idem)

Marco Bomfim e Miguel Mendes. Aí, cabe a pergunta: Onde estava a polícia, numa hora dessas?

Com Alex Brazil e Marco Bomfim, autores da obra. (idem)

No aniversário de Nelsinho Pacheco. Além desse cara de costas, que eu não sei quem é, temos aí a Angélica, a Helen e Carla, irmã do aniversariante.  (07/08/09)

Com Worney e Dudu, que, juntamente com a cerveja, o copo e o rango sobre o banco, formam um conjunto de cores. (2009)


Outra vez disfarçando a ansiedade pela espera de um rango preparado por Nelsinho Pacheco. (06/09/09)


Agora, olha só a cara do rango. Não justifica a minha ansiedade?


Shakespeare – um pitbull com alma de vira-lata.


Elaine Pernambuco, mas feliz que pato na chuva, durante ensaio de Agora, sou eu. (08/01/09)

A Massa Experiência e as experiências da Massa (Módulo 2)


No sentido horário: Marçal, Paulo Romário, Gigante, Roberto e Aldemir Duval





Resumo do Módulo 1: Num papo transcorrido aqui em casa, durante um almoço no meu aniversário (1971), pintou a idéia de se fazer um show com Chico Rodrigues, cantando composições nossas, no Temam. Para que isto acontecesse, precisávamos juntar uns músicos que se garantissem no acompanhamento. Foi assim que reunimos, inicialmente,  Aldemir Duval, Gigante e Paulo Romário. Enquanto procurávamos um guitarrista e um batera, Aldemir ia compondo, em parceria com Maurício Mamede, Capistrano, Chico e eu um repertório pop-rock, que nada tinha a ver com a idéia original. Três dessas músicas foram parar num festival, em Paracambi, o que nos fez abandonar o projeto do show e reunir uma galera, formando uma banda com integrantes tão provisórios quanto o nome que ostentava: Cinto de Castidade.

 

O Festival de Paracambi aconteceu nos dias 14 e 15 de novembro de 1971 – um domingo seguido de feriado nacional. Seguimos pra lá no jipe de Renatão, pai de Paulo. Do Flamengo, onde ele morava, saímos nós dois, Deyse, namorada dele, Vívian, amiga do casal desde os tempos de colégio, e Chico Rodrigues. Só que, num determinado ponto do caminho, nos esperava o restante da galera: Aldemir, Gigante, Baixinho, Trinca, Marco e Maurício. Pronto: 11 pessoas num jipe. Vívian dirigindo.

Não sabe esses quebra-molas, que se reproduzem nos muitos perímetros urbanos do Grande Rio? Pois é, a primeira vez em que vi isso foi em Paracambi. Essa medida se “justificava” na época da ditadura, quando não sei quantos quilômetros quadrados em torno de unidades militares eram considerados “área militar”. Como o município é pequeno e abriga um quartel do Exército, quase todo o seu centro comercial era assim considerado. Logo, não se podia trafegar além da velocidade permitida. Então, tome quebra-molas. 

Não preciso dizer que ao chegar à cidade, por volta das 6 da tarde, viramos centro das atenções. Nove homens e duas mulheres num veículo. Eles, em sua maioria, barbudos e cabeludos, vestindo roupas “extravagantes”, tanto quanto os vestidos compridos e floridos delas. Vívian era americana, criada no Brasil, filha de americano com francesa. Mesmo se quisesse (e ela não queria) não conseguia passar despercebida, com seu porte avantajado de quase 1,80cm.

Por ser domingo e estar rolando um festival, o pequeno centro da cidade estava movimentado. Mas nem assim deixaram de notar a presença dos hippies, como fomos logo tachados. É interessante explicar, que mesmo os artistas que participavam do concurso se mostravam por demais comportados, para os nossos padrões. Como era aniversário de Paulo, fomos pra um botequim, comemorar. Não sei de onde apareceu um bolo de fubá, com 27 palitos de fósforo em cima, pra cantar Parabéns. Eu estava em abstinência alcoólica, mas a galera era abstêmia por natureza.

O que faltava no consumo etílico sobrava noutros consumos. Gigante levara consigo quatro frascos de um xarope que, disseram, dava barato. Rapidamente, o conteúdo dos frascos foi dividido por umas oito cabeças e ingerido ali mesmo, no botequim. Nem o ar repressivo que pairava sobre a cidade nos impediu de cruzá-la de jipe, matando uns baseados.

Chegamos ao clube um pouco antes de começar o festival. Éramos a música de número seis, justamente A lata, que eu iria cantar: única apresentação do Cinto de Castidade naquela noite. À nossa entrada no palco, uma meia dúzia de nativos ensaiou uma vaia, mas a cara que eu fiz pra eles desestimulou a manifestação. A música foi desclassificada, tudo bem. Tínhamos mais duas pra noite seguinte e botávamos fé em Gás lacrimejante, na interpretação de Marco Bomfim.

Se o tal xarope dava barato, mesmo, não sei dizer. Em mim, só deu coceira. E foi sob o efeito de um moderador de apetite cheio de anfetamina, que passamos a noite e todo o dia seguinte de boresta, circulando por Paracambi. Quando chegamos ao clube, ainda virados, ficamos sabendo que o início dos trabalhos, marcado para as 7, iria “atrasar um pouco”. O que não prevíamos é que aquele dia não terminaria sem alguns acontecimentos, merecedores de registro. Um deles, relacionado com uma puta dor no estômago que eu senti. Ainda hoje acredito que foi aquele bolo de fubá, ingerido na véspera.  

Solidário, como sempre, Paulo Romário se dispôs a me acompanhar na busca de algum lugar aonde eu pudesse tomar um copo de leite. Porém, por mais estranho que possa parecer, não havia um bar aberto, apesar do feriado e do evento que movimentava a cidade. Voltamos desolados. Quando nos aproximamos do clube, passamos por uma casa onde várias pessoas conversavam na varanda. Paulo quis saber do que se tratava. Seria um bar? Expliquei que não e ele emendou com a seguinte proposta: “Será que não dá pra arranjarem um copo de leite pra você?”. Rejeitei a idéia, alegando não ter cara de pau suficiente pra pô-la em prática. “Quer que eu peça, então?”. Agora, não havia como recusar. Aquela dor no estômago... Paramos diante do portão e demos boa noite, quase em jogral. Uma mulher veio nos atender, e com ela Paulo travou o seguinte diálogo:

- Daria pra senhora arranjar um copo de leite gelado?

Surpreendida com a solicitação, a mulher tentou entender o que se passava:

- Ah, vocês querem um cafezinho?

Ao que ele respondeu:

- O cafezinho, eu aceito, sim. Mas eu queria, também, um copo de leite pro meu amigo, que tá passando mal.

Ela pediu que esperássemos e entrou. Na volta, trouxe, numa bandeja, uma xícara de café quente e um copo duplo de leite gelado. Este caiu em meu estômago como um bálsamo.

Chegamos ao clube e encontramos tudo como antes: em clima de espera. E se assim era, fazer o que, né? Saímos pra fumar outro baseado. Amontoados no jipe, seguimos pela rua principal em direção aos locais mais ermos da cidade, que já havíamos descoberto. Ao passar sobre um quebra-molas, o carro morreu. Quando voltou funcionar, Marco Bomfim lançou a idéia, aceita unanimemente: “Que tal deixar Paulo levar o carro um pouco?”. Como entre um quebra-molas e outro havia uma reta de uns 50 metros, Romário aceitou a sugestão. Sentado no colo de Vívian, que comandava os pedais, ele levou o jipe em primeira, até o redutor de velocidade seguinte, sob os aplausos da galera. Afinal, esta era primeira vez que víamos um cego dirigindo carro.

Entocados sob um arvoredo, jipe todo apagado, dávamos doizinho, quando ouvimos o som do clube: começava a segunda eliminatória do festival. Precisávamos sair logo, pois Gás lacrimejante era a quarta música. Ao fazer a manobra, Vívian entrou de ré num terreno baldio e o jipe atolou. Quanto mais a menina acionava o acelerador, mais o veiculo atolava. Sugeri que descêssemos pra diminuir o peso, embora isso implicasse nos cagarmos todos de lama.

Agora, que o mestre de cerimônia já anunciava a segunda concorrente, nossa presença naquele local, cerca de um quilômetro do clube, era uma temeridade. Trinca fez um comentário: “Porra, o carro foi dirigido por um cego e atolou nas mãos de uma vidente, com quase dez anos de carteira”.  Todos riram, menos Vívian, que ficou mais nervosa do que já estava. Maurício, doido pra comê-la, assumiu ares protetores, tentando acalmá-la. Só havia um jeito: deixarmos o jipe ali, pra pegar depois. Estava começando a música de número três.

A partir dali, pronto, foi o caos. Correndo, literalmente, e levando Paulo a reboque, ouvimos quando o cara anunciou nossa música. Estávamos a uns 100 metros do clube. Após a terceira chamada, foi anunciada a canção seguinte. Quando adentramos o salão, enlameados até a medula, os músicos já se preparavam pra tocar. O Cinto invadiu o palco e foi assumindo os instrumentos ainda vagos. O mestre de cerimônia quis saber o que estava acontecendo. Dadas as explicações, concordou em deixar que a gente tocasse.

Gás lacrimejante era uma das músicas mais bonitas, da primeira safra de composições do Aldemir. A primeira parte dizia: “Gás lacrimejante,/feio e indecente,/brilhou no céu, no mar,/no azul do seu olhar./Pela janela o sonho fugiu...”. Na segunda, era a mesma melodia sobre outros versos: “Estrelas caem/num céu cheio de vazio...”. Dada a introdução, Marco Bomfim entrou. Só que cantando a segunda parte. Isto confundiu os jurados, que acompanhavam o texto. Onde esperavam ouvir “gás lacrimejante, feio e indecente”, ouviram “estrelas caem, etc.”. Foi um custo, até que Marco colocasse a coisa na ordem certa.

Após essa interpretação desastrosa da nossa melhor concorrente, praticamente não tínhamos mais nada a fazer ali. As voltas do relógio (Chico Rodrigues e Maurício Mamede), 13ª canção da noite, não levava a mínima chance de chegar a lugar nenhum. Era uma valsinha muito da sensaborona, que, ainda por cima, tinha o “mérito” de plagiar inteiramente a segunda parte de Serenô, do Antonio Almeida, sucesso dos anos 50.

Chico, aliás, era muito limitado, musicalmente. Inclusive, a sua figura destoava dos demais membros da banda. Muito branco, gorducho (quando jovem), usava calça de tergal e combinava as meias com a camisa. Só seus cabelos compridos lhe conferiam alguma identidade com o grupo. Mesmo assim, o repartido do lado direito denunciava o nerd que realmente ele era. Começara a fumar maconha havia pouco tempo, e isto aflorava o seu homossexualismo ainda enrustido, pelo menos entre amigos.

Anunciada As voltas do relógio, a galera retornou ao palco. Mal começou a introdução, eu – em pé na platéia, com Deyse e Vívian – já antevi a merda que ia dar. Chico empinou a barriguinha pra frente, juntou as mãos á altura do peito e, com os pés à moda dez pras duas, deu de marcar o compasso ternário com o bico do sapato social, muito bem engraxado. Quando ele atacou: “Mamãezinha, você falou/das voltas do relógio,/mas eu queria saber do amor...”, a reação do público não se fez esperar: contra-atacou com uma vaia estrepitosa, aos gritos de “fora! fora!..” e “sai, viado!”... coisa de rachar a cara.

Passado o segundo desastre musical da noite, só queríamos vir embora. E teríamos feito isso imediatamente, se não fosse o caso da música seguinte ser a última entre as concorrentes. Terminado o desfile das canções o mestre de cerimônia avisou que o júri iria se reunir secretamente, a fim de dar o resultado do festival, em poucos minutos. Após um tempo de espera, o cara voltou ao microfone, pra perguntar se, entre os músicos presentes, não havia quem quisesse tocar um pouco. O Cinto de Castidade quis.

Foi todo mundo pro palco novamente e (agora, sim!) a rapaziada lavou a alma. Sem ensaio prévio, sete músicos que mal se conheciam, empunhando seus respectivos instrumentos, sequer sabiam o que apresentar. “Kansas City” – gritou Trinca. E Kansas City contagiou a platéia, que cantou junto, dançou e pediu bis. Nem parecia o mesmo público, que minutos antes vaiara Chico Rodrigues, agora, ovacionado como vocalista, cantando num inglês quase perfeito.

Missão cumprida, conseguimos a ajuda de alguém que, com uma pick-up Toyota, desatolou nosso jipe. Chegamos ao Rio já no início da madrugada: cansados, enlameados, famintos, porém felizes. Prontos pra muitas outras jornadas semelhantes. É que, com dez anos de antecedência, já estávamos em pleno acordo com Milton e Fernando Brandt: “para cantar, nada era longe/tudo tão bom...”.

Mais Cinto de Castidade, no próximo módulo. Não nos dispersemos.

 

I love you so

(Aldemir Duval e Eldemar de Souza)

Boy, que dia é hoje?

Boy, pra onde se vai?

Boy, não vá sem ouvir...

Boy, eu vou lhe dizer:

I love you so, my boy!

I love you so!

(1971)

 

Nova era

(Aldemir Duval e Eldemar de Souza)

Uma nova era

hoje se inicia,

um planeta vivo

vem nos visitar.

Não se preocupe,

não se impressione,

não se questione:

pode acreditar.

 

Descerá um disco

todo cintilante,

na Washington Luiz.

E seus tripulantes,

de olhar fosforescente,

mostrarão pra gente

o que jamais se viu.

 

E uma nova era

logo se anuncia,

com seres diferentes

na televisão.

No comportamento,

na visão do belo,

num ato paralelo

à concepção.

 

Não trarão consigo

armas nucleares,

como anuncia

o mundo ocidental.

São muitos anos

de vida inteligente.

De gente in televida,

não nos farão mal.

(1972)

 

ASDFG

(Aldemir Duval e Capistrano)

As letras da monótona máquina

se repetem, se repetem.

Letreiros luminosos iluminam

as noite, tocando um

ASDFG, ASDFG.

 

Masmorras ocultas escondem

os dedos tocando teclados,

em ordem, em ASDFG.

 

O homem treme ou carrega,

curvado, nas mãos

o trabalho, a família, o patrão.

 

ASDFG – dizem o pai

e a mãe, solenemente.

E o mundo, completamente,

aprendendo a lição.

(1972)

 

Estrela d’Ocidente

(Aldemir Duval e Maurício Mamede)

Eu vi o altar...

Eu sou o santo

de botinas furadas.

Meu santo é santo

transmutado, transportado

numa estrela cadente,

numa estrela decadente.

 

Eu sou um bom menino,

como geléia todo dia,

pela glória d’Ocidente.

Mas sou uma guitarra louca

no coração da América,

pela glória dissidente.

(1972)

Fogo fátuo

Quando às vezes fito

a tua foto,

sinto-me flutuando

em água, feito um feto.

Então, tento abraçar-te,

mas vejo que é tudo

um fogo fátuo.

(31/12/09)

Sera tamem...

Libertas quae

sera tamem.

Liberta é o que

serás também.

(10/09/08)

A palo molhado

Saiu comendo todas,

pau-la-ti-na-men-te.

Era mesmo um pau latino.

(17/11/07)

Akeruê!

Se a ZaBeLê

aa o vÔo,

o seu ôVo

LaÇa a BeLeZa?

(1998)

Glosa obscena

Mote:

Bota é coisa que se calça.

Calça é coisa que se bota?

 

Me sorrindo disse a falsa,

quando eu falei: Ói, que eu boto:

Você mete, meu devoto,

bota é coisa que se calça”.

Dançou rumba, dançou valsa

feito uma égua que trota.

E depois, só de lorota,

me fez cheirar a calcinha

e eu perguntei: Piririnha,

calça é coisa que se bota?

(1987)

O olho do pai de vidro

O menino amava o pai,

que tinha um olho de vidro

com o qual o menino

costumava se entreter.

Tomava o olho nas mãos,

colocava junto ao seu

e depois de brincar bastante

deixava em cima da mesa,

entre restos de comida

e a louça do jantar.

 

Numa noite, o pai chegou

e o filho (todo contente)

pedindo o olho emprestado

pôs-se a brincar, como sempre.

Em breve fração de tempo,

a criança descuidou-se

e o olho caiu partido,

sobre o piso da cozinha.

            Dava gosto ver aquele olho

            no chão estilhaçado

            e o menino rindo à beça.

(1979)

Um soneto

Vende-se um poema em bom estado.

Estilo soneto, médio português,

que, embora sem o aval da Academia,

brilhou nos álbuns das donzelas dos Novaes.

 

Com certificado de antiguidade

(pois ela é posto, como já diziam!),

contestou Andrade e o Modernismo

e pisou na espora da Águia de Haia.

 

As rimas – amor cego com morcego

e humilhar (o verbo) com o milhar (da cobra) –

conserva todas em semi-pureza.

 

Tratar com o poeta em desencanto

que, depondo a pena, se excluiu do páreo

e já não concorre à imortalidade.

(1976)

Outro soneto

O meu amor é como um passarinho:

às vezes voa, canta ou adormece.

Que som é esse que vem do jardim,

enquanto os frutos apodrecem nos vitrais?

 

Embebeu em sódio e morreu de tédio

- nenhum vivente veio ter-lhe ao leito.

Sem qualquer mistério ou misericórdia

a procissão do dia ia: Ave Maria!

 

Par ou coroa/ação, pensamento...

Que antigo segredo jazia na lápide?

A confissão do réu fora soberba.

 

O abajur lilás não é mais aquele

e eu já estou cansado do comum das coisas...

Mas chega de soneto. Tá legal!

(1976)

Álbum de família

Você viu só,

por quantas mãos passou

o nosso álbum de família?

 

Não sei quantas mil mãos

absorveram o gesto.

Não sei quantos mil olhos

observaram o incesto,

cometido na areia branca

- que crescia como bruma

sob seus pés.

(1975)

Meu novo blues

Que bom poder vê-la aqui de novo.

Que tal sentarmos lá naquela pedra,

pra deixar passar a noite inteira

num bate papo, assim, sem quê nem mais?

 

E por falar em noite, aliás,

não sei se você ainda se lembra

do samba que eu cantava, no momento

em que você bateu a porta me dizendo:

Até segunda-feira” – e nunca mais.

 

Daí, o tempo passou a correr;

daí, o mato cresceu ao redor

e eu fui, naturalmente, me esquivando

de cantar aquele samba sincopado.

Tentei fazer um rock progressivo

e, modéstia à parte, até que me dei bem.

 

Igual ao mato, cresceram meus cabelos;

tal como o tempo, correram mil boatos...

Não sei se você soube, até disseram

que eu tinha vocação pra ser guru.

 

Mas hoje, nesta noite, nesta hora,

eu lhe confesso: valeu a surpresa

da gente ter se achado de repente.

Faça de conta que não houve nada,

vamos deixar que as coisas aconteçam.

Que novos tempos venham e amanheçam,

enquanto eu lhe dedico este meu novo blues

(1974)

Nacional Kid

Fantasiado de Nacional Kid

(mas, um Kid tropical).

Montando um belo pangaré speedy:

                                                           amoral.

 

Veio de longe.

Transformou-se em nada,

tanto quanto algo

que nunca existiu.

 

            E bebeu teu sangue venoso.

            E bebeu teu sangue venenoso.

            E abraçou teu corpo em combustão.

(1973)

Balada do cotidiano

É natural que eu morra todo dia:

            Envolvido em súmulas

            Corroído em ácido

            Diluído em pó.

É natural que eu corra todo dia:

            Dividido em dúvidas

            Promovido a vítima

            Consumido em som.

 

Naturalmente eu me sento

e lhe peço: não reclame

se ando meio distraído.

É que eu morro sem ser visto

e visto, sem ter morrido,

a urna toda de vidro.

 

Naturalmente eu lhe chamo

e pergunto, sonolento,

se você ainda é a mesma.

Afinal, eu fui gerado,

concebido e conservado

pra ser passado e traído

ou dar conta do recado.

 

É natural que eu saia todo dia:

            Dirigido e tácito

            Aguerrido ao cântico

            Sem perder o tom.

É natural que eu caia todo dia:

            Reprimido, em pânico,

            Invertido em fórmulas

            Inventado e só.

(1972)