No sentido horário: Marçal, Paulo Romário, Gigante, Roberto e Aldemir Duval
Resumo do Módulo 1: Num papo transcorrido aqui em casa, durante um almoço no meu aniversário (1971), pintou a idéia de se fazer um show com Chico Rodrigues, cantando composições nossas, no Temam. Para que isto acontecesse, precisávamos juntar uns músicos que se garantissem no acompanhamento. Foi assim que reunimos, inicialmente, Aldemir Duval, Gigante e Paulo Romário. Enquanto procurávamos um guitarrista e um batera, Aldemir ia compondo, em parceria com Maurício Mamede, Capistrano, Chico e eu um repertório pop-rock, que nada tinha a ver com a idéia original. Três dessas músicas foram parar num festival, em Paracambi, o que nos fez abandonar o projeto do show e reunir uma galera, formando uma banda com integrantes tão provisórios quanto o nome que ostentava: Cinto de Castidade.
O Festival de Paracambi aconteceu nos dias 14 e 15 de novembro de 1971 – um domingo seguido de feriado nacional. Seguimos pra lá no jipe de Renatão, pai de Paulo. Do Flamengo, onde ele morava, saímos nós dois, Deyse, namorada dele, Vívian, amiga do casal desde os tempos de colégio, e Chico Rodrigues. Só que, num determinado ponto do caminho, nos esperava o restante da galera: Aldemir, Gigante, Baixinho, Trinca, Marco e Maurício. Pronto: 11 pessoas num jipe. Vívian dirigindo.
Não sabe esses quebra-molas, que se reproduzem nos muitos perímetros urbanos do Grande Rio? Pois é, a primeira vez em que vi isso foi em Paracambi. Essa medida se “justificava” na época da ditadura, quando não sei quantos quilômetros quadrados em torno de unidades militares eram considerados “área militar”. Como o município é pequeno e abriga um quartel do Exército, quase todo o seu centro comercial era assim considerado. Logo, não se podia trafegar além da velocidade permitida. Então, tome quebra-molas.
Não preciso dizer que ao chegar à cidade, por volta das 6 da tarde, viramos centro das atenções. Nove homens e duas mulheres num veículo. Eles, em sua maioria, barbudos e cabeludos, vestindo roupas “extravagantes”, tanto quanto os vestidos compridos e floridos delas. Vívian era americana, criada no Brasil, filha de americano com francesa. Mesmo se quisesse (e ela não queria) não conseguia passar despercebida, com seu porte avantajado de quase 1,80cm.
Por ser domingo e estar rolando um festival, o pequeno centro da cidade estava movimentado. Mas nem assim deixaram de notar a presença dos hippies, como fomos logo tachados. É interessante explicar, que mesmo os artistas que participavam do concurso se mostravam por demais comportados, para os nossos padrões. Como era aniversário de Paulo, fomos pra um botequim, comemorar. Não sei de onde apareceu um bolo de fubá, com 27 palitos de fósforo em cima, pra cantar Parabéns. Eu estava em abstinência alcoólica, mas a galera era abstêmia por natureza.
O que faltava no consumo etílico sobrava noutros consumos. Gigante levara consigo quatro frascos de um xarope que, disseram, dava barato. Rapidamente, o conteúdo dos frascos foi dividido por umas oito cabeças e ingerido ali mesmo, no botequim. Nem o ar repressivo que pairava sobre a cidade nos impediu de cruzá-la de jipe, matando uns baseados.
Chegamos ao clube um pouco antes de começar o festival. Éramos a música de número seis, justamente A lata, que eu iria cantar: única apresentação do Cinto de Castidade naquela noite. À nossa entrada no palco, uma meia dúzia de nativos ensaiou uma vaia, mas a cara que eu fiz pra eles desestimulou a manifestação. A música foi desclassificada, tudo bem. Tínhamos mais duas pra noite seguinte e botávamos fé em Gás lacrimejante, na interpretação de Marco Bomfim.
Se o tal xarope dava barato, mesmo, não sei dizer. Em mim, só deu coceira. E foi sob o efeito de um moderador de apetite cheio de anfetamina, que passamos a noite e todo o dia seguinte de boresta, circulando por Paracambi. Quando chegamos ao clube, ainda virados, ficamos sabendo que o início dos trabalhos, marcado para as 7, iria “atrasar um pouco”. O que não prevíamos é que aquele dia não terminaria sem alguns acontecimentos, merecedores de registro. Um deles, relacionado com uma puta dor no estômago que eu senti. Ainda hoje acredito que foi aquele bolo de fubá, ingerido na véspera.
Solidário, como sempre, Paulo Romário se dispôs a me acompanhar na busca de algum lugar aonde eu pudesse tomar um copo de leite. Porém, por mais estranho que possa parecer, não havia um bar aberto, apesar do feriado e do evento que movimentava a cidade. Voltamos desolados. Quando nos aproximamos do clube, passamos por uma casa onde várias pessoas conversavam na varanda. Paulo quis saber do que se tratava. Seria um bar? Expliquei que não e ele emendou com a seguinte proposta: “Será que não dá pra arranjarem um copo de leite pra você?”. Rejeitei a idéia, alegando não ter cara de pau suficiente pra pô-la em prática. “Quer que eu peça, então?”. Agora, não havia como recusar. Aquela dor no estômago... Paramos diante do portão e demos boa noite, quase em jogral. Uma mulher veio nos atender, e com ela Paulo travou o seguinte diálogo:
- Daria pra senhora arranjar um copo de leite gelado?
Surpreendida com a solicitação, a mulher tentou entender o que se passava:
- Ah, vocês querem um cafezinho?
Ao que ele respondeu:
- O cafezinho, eu aceito, sim. Mas eu queria, também, um copo de leite pro meu amigo, que tá passando mal.
Ela pediu que esperássemos e entrou. Na volta, trouxe, numa bandeja, uma xícara de café quente e um copo duplo de leite gelado. Este caiu em meu estômago como um bálsamo.
Chegamos ao clube e encontramos tudo como antes: em clima de espera. E se assim era, fazer o que, né? Saímos pra fumar outro baseado. Amontoados no jipe, seguimos pela rua principal em direção aos locais mais ermos da cidade, que já havíamos descoberto. Ao passar sobre um quebra-molas, o carro morreu. Quando voltou funcionar, Marco Bomfim lançou a idéia, aceita unanimemente: “Que tal deixar Paulo levar o carro um pouco?”. Como entre um quebra-molas e outro havia uma reta de uns 50 metros, Romário aceitou a sugestão. Sentado no colo de Vívian, que comandava os pedais, ele levou o jipe em primeira, até o redutor de velocidade seguinte, sob os aplausos da galera. Afinal, esta era primeira vez que víamos um cego dirigindo carro.
Entocados sob um arvoredo, jipe todo apagado, dávamos doizinho, quando ouvimos o som do clube: começava a segunda eliminatória do festival. Precisávamos sair logo, pois Gás lacrimejante era a quarta música. Ao fazer a manobra, Vívian entrou de ré num terreno baldio e o jipe atolou. Quanto mais a menina acionava o acelerador, mais o veiculo atolava. Sugeri que descêssemos pra diminuir o peso, embora isso implicasse nos cagarmos todos de lama.
Agora, que o mestre de cerimônia já anunciava a segunda concorrente, nossa presença naquele local, cerca de um quilômetro do clube, era uma temeridade. Trinca fez um comentário: “Porra, o carro foi dirigido por um cego e atolou nas mãos de uma vidente, com quase dez anos de carteira”. Todos riram, menos Vívian, que ficou mais nervosa do que já estava. Maurício, doido pra comê-la, assumiu ares protetores, tentando acalmá-la. Só havia um jeito: deixarmos o jipe ali, pra pegar depois. Estava começando a música de número três.
A partir dali, pronto, foi o caos. Correndo, literalmente, e levando Paulo a reboque, ouvimos quando o cara anunciou nossa música. Estávamos a uns 100 metros do clube. Após a terceira chamada, foi anunciada a canção seguinte. Quando adentramos o salão, enlameados até a medula, os músicos já se preparavam pra tocar. O Cinto invadiu o palco e foi assumindo os instrumentos ainda vagos. O mestre de cerimônia quis saber o que estava acontecendo. Dadas as explicações, concordou em deixar que a gente tocasse.
Gás lacrimejante era uma das músicas mais bonitas, da primeira safra de composições do Aldemir. A primeira parte dizia: “Gás lacrimejante,/feio e indecente,/brilhou no céu, no mar,/no azul do seu olhar./Pela janela o sonho fugiu...”. Na segunda, era a mesma melodia sobre outros versos: “Estrelas caem/num céu cheio de vazio...”. Dada a introdução, Marco Bomfim entrou. Só que cantando a segunda parte. Isto confundiu os jurados, que acompanhavam o texto. Onde esperavam ouvir “gás lacrimejante, feio e indecente”, ouviram “estrelas caem, etc.”. Foi um custo, até que Marco colocasse a coisa na ordem certa.
Após essa interpretação desastrosa da nossa melhor concorrente, praticamente não tínhamos mais nada a fazer ali. As voltas do relógio (Chico Rodrigues e Maurício Mamede), 13ª canção da noite, não levava a mínima chance de chegar a lugar nenhum. Era uma valsinha muito da sensaborona, que, ainda por cima, tinha o “mérito” de plagiar inteiramente a segunda parte de Serenô, do Antonio Almeida, sucesso dos anos 50.
Chico, aliás, era muito limitado, musicalmente. Inclusive, a sua figura destoava dos demais membros da banda. Muito branco, gorducho (quando jovem), usava calça de tergal e combinava as meias com a camisa. Só seus cabelos compridos lhe conferiam alguma identidade com o grupo. Mesmo assim, o repartido do lado direito denunciava o nerd que realmente ele era. Começara a fumar maconha havia pouco tempo, e isto aflorava o seu homossexualismo ainda enrustido, pelo menos entre amigos.
Anunciada As voltas do relógio, a galera retornou ao palco. Mal começou a introdução, eu – em pé na platéia, com Deyse e Vívian – já antevi a merda que ia dar. Chico empinou a barriguinha pra frente, juntou as mãos á altura do peito e, com os pés à moda dez pras duas, deu de marcar o compasso ternário com o bico do sapato social, muito bem engraxado. Quando ele atacou: “Mamãezinha, você falou/das voltas do relógio,/mas eu queria saber do amor...”, a reação do público não se fez esperar: contra-atacou com uma vaia estrepitosa, aos gritos de “fora! fora!..” e “sai, viado!”... coisa de rachar a cara.
Passado o segundo desastre musical da noite, só queríamos vir embora. E teríamos feito isso imediatamente, se não fosse o caso da música seguinte ser a última entre as concorrentes. Terminado o desfile das canções o mestre de cerimônia avisou que o júri iria se reunir secretamente, a fim de dar o resultado do festival, em poucos minutos. Após um tempo de espera, o cara voltou ao microfone, pra perguntar se, entre os músicos presentes, não havia quem quisesse tocar um pouco. O Cinto de Castidade quis.
Foi todo mundo pro palco novamente e (agora, sim!) a rapaziada lavou a alma. Sem ensaio prévio, sete músicos que mal se conheciam, empunhando seus respectivos instrumentos, sequer sabiam o que apresentar. “Kansas City” – gritou Trinca. E Kansas City contagiou a platéia, que cantou junto, dançou e pediu bis. Nem parecia o mesmo público, que minutos antes vaiara Chico Rodrigues, agora, ovacionado como vocalista, cantando num inglês quase perfeito.
Missão cumprida, conseguimos a ajuda de alguém que, com uma pick-up Toyota, desatolou nosso jipe. Chegamos ao Rio já no início da madrugada: cansados, enlameados, famintos, porém felizes. Prontos pra muitas outras jornadas semelhantes. É que, com dez anos de antecedência, já estávamos em pleno acordo com Milton e Fernando Brandt: “para cantar, nada era longe/tudo tão bom...”.
Mais Cinto de Castidade, no próximo módulo. Não nos dispersemos.
I love you so
(Aldemir Duval e Eldemar de Souza)
Boy, que dia é hoje?
Boy, pra onde se vai?
Boy, não vá sem ouvir...
Boy, eu vou lhe dizer:
I love you so, my boy!
I love you so!
(1971)
Nova era
(Aldemir Duval e Eldemar de Souza)
Uma nova era
hoje se inicia,
um planeta vivo
vem nos visitar.
Não se preocupe,
não se impressione,
não se questione:
pode acreditar.
Descerá um disco
todo cintilante,
na Washington Luiz.
E seus tripulantes,
de olhar fosforescente,
mostrarão pra gente
o que jamais se viu.
E uma nova era
logo se anuncia,
com seres diferentes
na televisão.
No comportamento,
na visão do belo,
num ato paralelo
à concepção.
Não trarão consigo
armas nucleares,
como anuncia
o mundo ocidental.
São muitos anos
de vida inteligente.
De gente in televida,
não nos farão mal.
(1972)
ASDFG
(Aldemir Duval e Capistrano)
As letras da monótona máquina
se repetem, se repetem.
Letreiros luminosos iluminam
as noite, tocando um
ASDFG, ASDFG.
Masmorras ocultas escondem
os dedos tocando teclados,
em ordem, em ASDFG.
O homem treme ou carrega,
curvado, nas mãos
o trabalho, a família, o patrão.
ASDFG – dizem o pai
e a mãe, solenemente.
E o mundo, completamente,
aprendendo a lição.
(1972)
Estrela d’Ocidente
(Aldemir Duval e Maurício Mamede)
Eu vi o altar...
Eu sou o santo
de botinas furadas.
Meu santo é santo
transmutado, transportado
numa estrela cadente,
numa estrela decadente.
Eu sou um bom menino,
como geléia todo dia,
pela glória d’Ocidente.
Mas sou uma guitarra louca
no coração da América,
pela glória dissidente.
(1972)
Esse xarope era "Romilar", quebrava o galho de quem precisava se ligar com pouquíssimo dinheiro,
ResponderExcluireheheheheh.